top of page
Escritos, artigos e catarses

Por Ana Luiza Faria

Quando o corpo está perto, mas o coração longe: O impacto do distanciamento emocional nas relações amorosas

“Estamos juntos, mas é como se estivéssemos sozinhos.” Essa frase tem se tornado cada vez mais comum nos relatos de casais que chegam à psicoterapia. E, embora o distanciamento emocional nem sempre seja percebido de forma clara no início, seus efeitos são profundos e muitas vezes devastadores para a relação.


Estar emocionalmente distante não significa necessariamente a ausência de convivência. Muitas vezes, os parceiros ainda dividem o mesmo espaço físico, seguem com suas rotinas, cuidam dos filhos, mantêm uma vida funcional. No entanto, há uma desconexão silenciosa que vai se instalando. As conversas perdem a profundidade. O toque diminui. O olhar já não procura mais o outro com a mesma curiosidade. O silêncio se torna mais frequente que o diálogo, e a presença do outro, em vez de acolhimento, começa a gerar incômodo ou indiferença.


Esse afastamento pode surgir aos poucos, como um acúmulo de mágoas não ditas, pequenos conflitos não resolvidos, falta de tempo, excesso de demandas externas ou até mesmo medo de entrar em conversas difíceis. Em alguns casos, é uma forma de se proteger do desgaste emocional; em outros, é consequência de expectativas frustradas, da sensação de estar constantemente dando mais do que se recebe ou da perda da intimidade emocional.


A teoria do apego, desenvolvida por John Bowlby, nos ajuda a compreender esse processo. Segundo ele, desde a infância desenvolvemos padrões de apego que moldam a forma como nos relacionamos afetivamente. Em situações de conflito ou insegurança, esses padrões podem se manifestar como evitamento ou ansiedade o que, no contexto da vida a dois, pode se traduzir em afastamento emocional como forma de autoproteção. Assim, mesmo que o vínculo ainda exista, o medo da rejeição ou da vulnerabilidade faz com que um dos parceiros (ou ambos) se fechem afetivamente, interrompendo a troca emocional.


O impacto do distanciamento emocional vai além da esfera afetiva. Ele pode afetar a autoestima, gerar sensação de solidão dentro da própria relação, enfraquecer o desejo sexual e abrir espaço para o surgimento de fantasias de separação ou envolvimento afetivo com outras pessoas. Muitos casais entram nesse ciclo sem perceber: primeiro deixam de se escutar com real interesse, depois deixam de se tocar, de se elogiar, de rir juntos. Aos poucos, deixam de se escolher.


Quando isso acontece, é comum que um dos parceiros sinta que algo está errado, enquanto o outro talvez negue ou minimize o problema. Essa diferença de percepção pode gerar ainda mais afastamento, alimentando sentimentos de rejeição, frustração e ressentimento.


Mas o distanciamento emocional, por mais doloroso que seja, pode ser também um convite à reflexão e ao recomeço. É possível reconstruir a conexão, desde que haja disposição de ambos em olhar para a relação com honestidade e cuidado. Isso exige coragem para sair da zona de conforto, disposição para ouvir com empatia e vontade de se reconectar com a própria vulnerabilidade.


Resgatar o vínculo emocional não significa apenas “conversar mais” ou “passar mais tempo juntos”. Significa abrir espaço para a intimidade verdadeira aquela em que é possível falar sobre sentimentos, sonhos, medos e necessidades sem medo de julgamento. Significa reaprender a olhar para o outro com presença e curiosidade. Significa, muitas vezes, reaprender a amar de forma ativa, consciente e generosa.


Relações saudáveis não se constroem apenas com amor, mas com afeto cultivado diariamente, com a decisão de estar emocionalmente disponível, mesmo quando isso exige esforço. O distanciamento emocional não precisa ser o fim de um relacionamento. Ele pode ser o início de uma nova forma de se relacionar mais madura, mais sincera, mais viva.

Por Ana Luiza Faria

É que Narciso acha feio o que não é espelho ...

Em "Sampa", Caetano Veloso captura o desconcerto diante do novo através de um verso revelador: "Narciso acha feio o que não é espelho". A frase sintetiza uma tendência humana profunda a rejeição do que não se assemelha a nós. Mas ela também nos desafia: será possível enxergar o outro sem exigir que ele seja um reflexo nosso? O encontro com a diferença é sempre um confronto. Seja com uma pessoa, uma ideia ou uma cultura distante, o primeiro impulso é buscar familiaridade. Quando não a encontramos, surge o estranhamento uma reação natural, mas que revela mais sobre nós do que sobre o outro. Afinal, a identidade não é estática; ela se constrói justamente no diálogo com aquilo que nos escapa, que nos força a sair do conhecido.


Desde a infância, buscamos referências que validem nossa visão de mundo. O que se assemelha a nós conforta; o que diverge, inquieta. Esse mecanismo, porém, limita nossa capacidade de compreensão. Se só aceitamos o que já reconhecemos, fechamo-nos à riqueza do diverso. Aqui reside um paradoxo: o outro não precisa ser assimilado para ser entendido. Não é necessário que uma ideia se ajuste ao nosso repertório para que tenha valor, nem que uma pessoa se torne "como nós" para merecer respeito. A verdadeira abertura exige que abandonemos a necessidade de domínio que olhemos sem a pretensão de decifrar, categorizar ou reduzir.


Se Narciso só vê beleza no que reflete sua imagem, ele condena-se à solidão do autorreconhecimento. A identidade, no entanto, não se fortalece na repetição, mas na transformação. Cada encontro com o diferente seja ele harmonioso ou conflituoso — é uma chance de expandir quem somos. O estranhamento, portanto, não deveria ser um obstáculo, mas um convite. Quando nos deparamos com algo que não compreendemos imediatamente, temos duas escolhas: rejeitá-lo por não caber em nossos moldes ou permitir que ele nos questione. A segunda opção é mais difícil, mas também mais fértil.


Aceitar o outro em sua diferença exige desprendimento. Significa abrir mão da segurança do previsível e encarar o desconhecido sem a ânsia de controlá-lo. Esse movimento é desestabilizador mas é também o que nos permite crescer. Caetano, ao retratar São Paulo como um labirinto de contrastes, celebra justamente isso: a cidade que não se deixa decifrar, que resiste à simplificação. Da mesma forma, o outro (seja uma pessoa, uma cultura ou uma perspectiva) não existe para nos confirmar, mas para nos desafiar.


Diante do que não é espelho, como reagimos? Insistimos em buscar nosso próprio reflexo, ou estamos dispostos a enxergar o mundo e a nós mesmos com novos olhos? A resposta define não apenas nossas relações, mas a profundidade da nossa existência.

Por Ana Luiza Faria

Como o estilo de apego influencia os relacionamentos amorosos

Nos relacionamentos amorosos, há uma força invisível que molda a forma como nos conectamos, reagimos e interpretamos as interações com o outro. Essa força tem raízes profundas na história emocional e corporal de cada indivíduo e se manifesta no modo como regulamos nossas emoções, nos envolvemos nas dinâmicas de poder e repetimos padrões de comportamento ao longo da vida.


Desde os primeiros vínculos, o corpo aprende a responder ao contato, à ausência, à previsibilidade ou à instabilidade da presença do outro. Essas experiências não são apenas armazenadas como memórias, mas incorporadas em padrões somáticos que influenciam a forma como regulamos o afeto e a proximidade. O impacto do estilo de apego não se resume a crenças ou expectativas conscientes sobre os relacionamentos; ele se estrutura na própria organização neurobiológica do indivíduo, afetando a maneira como o sistema nervoso se ajusta ao contato e à separação.


A regulação somática e emocional em um vínculo afetivo reflete a qualidade das primeiras interações vividas. Corpos que se habituaram a um ambiente responsivo aprendem a modular a excitação e a confiança no contato. Por outro lado, quando a previsibilidade do outro é incerta ou marcada por inconsistências, o organismo internaliza respostas que oscilam entre hipervigilância e fechamento. Essas configurações iniciais tornam-se referenciais para as futuras interações amorosas, influenciando a forma como lidamos com a intimidade, a perda e a autonomia dentro de uma relação.


Nas dinâmicas de poder nos relacionamentos, os padrões de apego estabelecem como os parceiros negociam presença e ausência, segurança e liberdade. Há aqueles que tendem a buscar constantemente a validação do outro, enquanto outros sustentam uma independência defensiva que dificulta o envolvimento emocional profundo. Essas disposições não são apenas escolhas racionais, mas expressões de um modelo interno que o corpo aprendeu a reconhecer como seguro ou ameaçador. Assim, cada vínculo amoroso se torna um campo de tensão entre a necessidade de proximidade e a proteção contra o medo da perda ou do desamparo.


Padrões de comportamento recorrentes nos relacionamentos também são expressões dessa organização primária. A repetição de determinados conflitos, dificuldades em confiar ou se entregar, reações intensificadas ao afastamento e a busca incessante por sinais de estabilidade podem ser compreendidas como formas automáticas do organismo tentar restabelecer um equilíbrio aprendido na infância. No entanto, esse equilíbrio nem sempre favorece relações satisfatórias; muitas vezes, ele apenas reforça um ciclo previsível de expectativa e frustração.


Neurocientificamente, a base dessas experiências está nas redes que regulam o estresse e a recompensa, como o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e os circuitos de dopamina e ocitocina. A qualidade dos primeiros vínculos impacta diretamente esses sistemas, influenciando a forma como o corpo reage à proximidade ou ao distanciamento. Do ponto de vista epigenético, estudos demonstram que a responsividade e a sensibilidade do ambiente nos primeiros anos podem modular a expressão de genes ligados à resposta ao estresse, o que significa que o impacto do apego ultrapassa a esfera psicológica e se inscreve na própria biologia do indivíduo.


A percepção fenomenológica dos relacionamentos amorosos também passa pelo corpo e sua história de interação. Não se trata apenas do que se deseja conscientemente em um parceiro, mas de como o corpo reconhece e responde ao outro. A familiaridade de certas dinâmicas, mesmo quando disfuncionais, pode gerar uma sensação de previsibilidade que mantém o indivíduo preso a relações que reproduzem padrões antigos. Romper esse ciclo exige um trabalho de sensibilização e reorganização, permitindo novas formas de se relacionar que não estejam rigidamente moldadas pelas respostas aprendidas no passado.


Compreender o impacto do estilo de apego nos relacionamentos amorosos não significa apenas identificar tendências comportamentais, mas reconhecer como cada experiência afetiva está inscrita no corpo e influencia a forma como se constrói e se sustenta um vínculo. O processo de transformação não passa por uma mera mudança cognitiva, mas por um realinhamento entre percepção, emoção e organização somática, permitindo que novas formas de conexão possam emergir.

Site criado e administrado por: Ana Luiza Faria | Ponto Psi
Since: ©2022

bottom of page